Esta recordação não é de Talibãs, e só em parte é do Afeganistão. Não é sobre invasões nem cruzadas, nem sobre a urgência de falar e reflectir sobre elas. É a crónica de um momento. É sobre um cromossoma e um detalhe de hormonas.

Um pequeno detalhe de hormonas

Seguíamos direcções contrárias, quando nos cruzámos na rua e ela me agarrou a mão. Lembro-me, para lá do gesto brusco e da surpresa do despropósito, que tinha as mãos suaves, muito brancas, jovens. Com ela, vinha outro vulto. Ficou-me a certeza, por qualquer detalhe do andar ou da postura, que era uma mulher mais velha. Não lhe vi as mãos. Ou se as vi, não me lembro. Sei que ficou parada a ouvir-nos, um vulto na rua vazia, na quietude da tarde de calor e poeira. Não sei se sorria ou estranhava, se tinha força nos olhos ou se os desviava para baixo, a pousar, com cuidados de mãe, a timidez no chão. Também não me lembro da rua. Se passaram jipes e carros ou se a tarde caia em moleza e sono. Tinha de haver mais alguém, porque eu não podia estar sozinha, e teria de ser um homem. O tradutor? O chefe de missão? Não sei. Bolas, nem me recordo do nome do chefe de missão! Não faço ideia de quem era o tradutor, nem se o havia ou se o invento. A filigrana do cérebro é extraordinária — pergunto-me que arbítrio há, no que fica e no que parte, de que vale a pena viver tanto, se quase tudo se desfaz.

A memória dela ficou, mas, neste caso, eu sei porquê. Tinha palavras guardadas que me queria mostrar. Mas também não foram elas, essas palavras. Nem a voz. What’s your name? Mal se ouviram, abafadas por detrás do tecido. Os sons a lutarem por chegar até mim, vindos detrás de uma porta à qual eu não posso encostar ouvido. Adivinhei o suficiente para responder, em frase completa. My name is Rita. E perguntei de volta. And yours?

Não sobreviveu aos anos, a resposta. Não terá sobrevivido sequer àquela tarde, porque não me interessava o nome dela, tal como a ela não lhe interessava o meu nome. Não iriamos comunicar muito mais do que aquilo. Ainda fomos ao Where are you from, e ao Do you like Afghanistan, antes de ficarmos na encruzilhada do silêncio, onde a comunicação não encontrou por onde seguir. Páramos uns segundos desconfortáveis, antes de largarmos vida fora, cada uma para o seu destino, a prosseguir viagem em direcções contrárias. Uma para Norte, outra para Sul.

O que a minha temperamental memória guardou com precisão, foi a renda do pano para a qual falei. A renda do pano atrás do qual ela estava. Talvez se tivesse ficado mais de um mês no Afeganistão, a imagem se dissipasse na normalidade. Sei que vive em nós a possibilidade real de nos adaptarmos ao absurdo, de aceitarmos a beleza dos rinocerontes. Mas não fiquei tempo suficiente. Nenhuma outra mulher na rua me abordou. Não voltei a falar para um monte de trapos com voz lá dentro. As mulheres com quem falei, outras conversas assim, parcas de conteúdo, mas embrulhadas em entusiasmo, aconteceram dentro de portas ou dentro de tendas, com olhos, lábios, sobrancelhas, testa, tudo composto num rosto, acompanhado dos gestos e expressões que dizem sem esforço o que as palavras lutam por contar. Que permitem outros percursos e outro caminhos, quando se alcançam encruzilhadas de silêncio.

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Mas de nenhuma delas guardo memória. De nenhuma outra conversa, de nenhum outro rosto. Só deste momento, porque a ele se agarrou uma espécie de terror que o pregou para sempre no meu lembrar. Re-vivemos sempre tudo o que se aproxima ao medo porque só assim —  insistem em achar as fibras ancestrais do corpo —  sobrevivemos. O horror não é uma palavra, é um momento capturado no corpo, com vida própria, alheia ao querer. Se fechar os olhos, consigo vê-la e consigo sentir-me. O monte de trapos com uma renda azul, tão cerrada que nada vejo atrás dela. Procuro os olhos por instinto, mas não encontro um detalhe, não alcanço um brilho. A minha mente atrapalha-se, de se ver assim a caminhar no escuro, e entrega-me uma angústia de querer fugir. Não quero ver. Já sei se que é mau. Mas não quero ver. Como aquele rapaz que foi para Calcutá com idealismo e voltou com loucura — porque a mente aguentava saber, mas não aguentava o sentir que acompanhava o ver.

Estávamos em 2001. Os Estados Unidos tinham chegado em massa, com armas e jipes brancos, com a CIA e a USAID, e outros tinham seguido atrás, com mais jipes brancos e outros logotipos, com a Unicef e a World Vision e a Safe the Children e a Cruz Vermelha. O circo dos humanitários no seu esplendor. E eu ali, jovem e desenquadrada, com um idealismo despropositado e uma profunda incompetência em gestão de emergências. Fui e regressei rápido, com um desprezo que nunca mais perdi pelos que tinham o que eu não tinha: a competência, aliada a um profundo cinismo. Mas essa, é outra estória que não esta. Esta, é sobre os pequenos horrores que caem sobre o ser mulher. 

Foi em Herat, há 20 anos trás, precisos ao mês. Não havia Talibãs, removidos num ápice perante a máquina de guerra norte-americana, implacável quando tem vontade. Havia os senhores da guerra, os de antes, que eles tinham escolhido reabilitar e que lhes davam os nomes e as direcções dos “terroristas” que eles cegamente procuravam, vestidos de arrogância e missão, com aquele instinto ingénuo e perigoso de heróis do Oeste fora do Oeste. As mulheres, essas, continuavam fechadas em burqas.

Esta recordação não é de talibãs, e só em parte é do Afeganistão. Não é sobre invasões nem cruzadas, nem sobre a urgência de falar e reflectir sobre elas. É a crónica de um momento que me muitas vezes irrompe no meu pensar e me agarra a mão. Nos últimos dias, com bastante frequência. É sobre um cromossoma e um detalhe de hormonas. Estrogénio, em vez de testosterona. E sobre o horror e a estupidez do que uns fazem aos outros, em nome de coisa tão simples e tão fundamental.

Margaret Atwood, autora de The Handmaid’s Tale (A História de uma Serva), quando questionada sobre a probabilidade de uma mente deturpada estar por detrás da obra — a dela — responde, com a serenidade desconcertante que não inventa nada. Tudo o que escreve, está documentado num ou noutro período da História humana. Quem precisa de inventar horrores, quando o leque disponível dos que já foram praticados é tão rico… As mãos jovens e uma renda apenas onde nada se vê, naquele monte de trapos que caminha devagar, vergado aos 40º de um meio dia de Agosto em Herat.

@Rita Cruz. 2021

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