De regresso, às manhãs quietas de um céu que se espalha por mais caminho. Nesta madrugada bebé de sono finado, as nuvens poucas são farripas num manto de mar, ondas rebentadas em estrelas submersas e desfeitas em novelos de espuma pendurados do horizonte. Céu quieto, céu sereno, que segreda sempre de forma que não sei, a capacidade que tem e não deixa esquecer, de juntar ondas gigantes, em rebentações de voz grossa. A noite à minha volta é silêncio de cidade e selva, feito de carros arrastados na autoestrada, do canto rangente de um grilo e do estalido ocasional de uma osga.
Estou de regresso à pele húmida e transpirada, ao ronco grave e eterno das ventoinhas ligadas, aos desejos de chuva e brisa onde mergulhar o abafo, à terra onde os bichos são bichos e um mosquito não é apenas um estorvo. Estou sozinha, no jardim da casa, despenteado das ervas daninhas que foram crescendo na nossa ausência. Não se vêem ainda, na escuridão que mal as toca, mas eu já as sei. A casa dorme, atrás de mim.
Penso no que tenho a fazer. Nas malas de quatro meses, no frigorífico vazio, na pulseira cor-de-rosa que me indica que aqui tenho de ficar, fechada em casa, na obrigatória quarentena de quem regressa à Malásia. Penso nas três horas que levámos a sair do aeroporto. Penso que temos de trazer os gatos para casa. Penso nos reencontros e nos amigos que se vão embora. Penso nas rotinas que tenho de parir e que vão levar semanas a aprender a caminhar sozinhas. Penso na casa que é a mesma e já não é, porque nada permanece igual na agitação do tempo, mesmo o que parece que é imóvel e não tem vontade própria — por exemplo, sou capaz de jurar que não guardava as cuecas na gaveta onde elas estão e que ainda não consegui descobrir qual é. Penso que estou cansada e que devia dormir, que o cérebro não funciona quando o tempo e o espaço se desajustam, e as cinco da manhã são nove da noite.
Penso que não me apetece fazer nada a não ser tocar com a ponta do pé este céu escuro e este silêncio de ruídos, como quem prova a temperatura do mar, e ficar à deriva do tempo, a boiar no que foi e no que é, no que ficou e no que há-de vir.
@Rita Cruz. 2022