O ser humano, e usemos este termo em vez do homem com maiúscula, que continua a ser homem e não sei como se entende que a mulher se venha a encontrar nele, adapta-se a tudo. Diz-se. A bem ou a mal, melhor ou pior. Ocorreu-me começar assim e logo depois pareceu-me que, em toda a verdade encostada ao dito, há igual quantidade de mentira à espera de vez. É um aborrecimento, quando se pensa a fundo nas coisas. O que era de uma forma, passa a ser de outra, o que sempre se fez de uma maneira, descobre-se poder ser feito de outra, a sabedoria que se luz, percebe-se esburacada de ignorância. É uma chatice, pensar para lá da superfície das coisas.
Mas na superfície, afinal, está a beleza. E ao escrever isto, o meu corpo foge de mim e regressa à Índia. Aliás, já por lá andava quando pensei no dito, e agora estou lá de vez. Chinelo no pé, preto da poeira reagrupada em terra. Saia de seda colorida, comprida, por onde eles espreitam quando caminho. Mochila às costas, pesada de livros. Eu, na leveza dos vinte e poucos anos. Fui lá meter-me outra vez porque pensei no dito, e depois veio esta coisa da superfície. Aprende-se muito, na Índia. A confrontar os ditos.
Aterro, e a Índia dos meus vinte anos é logo, e antes de tudo, uma bofetada de perder o equilíbrio. Estou sozinha em Mumbai, nesse anteontem, com tostões no bolso e ilusões na cabeça. Estou à espera de um país à medida do meu idealismo ingénuo. Não entendi nada até ali. E depois entendi tudo. Mumbai não cheirava a especiarias e a incenso, cheirava a mijo e a lixo. Não era espiritualidade e beleza, era assédio e miséria. Não era só, claro, havia de um e de outro, mas um eu esperava e do outro não rezavam as crónicas que tinha lido — porque isto de limpar as experiências não nasceu com as redes sociais.
Jaipur, a cidade cor-de-rosa, diz-se. E eu leio. E construo na mente uma cidade de palácios rosa bebé a reluzir debaixo de um céu claro, como berços num quarto de menina, claro está, porque cor-de-rosa. Entro na cidade com as minhas chinelas e os meus pés de terra e a minha saia comprida e a primeira coisa que vejo é um desgraçado de pele escamada, todo ele da cor e matéria dos meus pés, no meio da rua poeirenta, a verter fezes pela barriga. Nunca tinha visto, nem sabia que pode ser assim, que há quem tenha um furo na barriga por onde os intestinos vertem o que normalmente sai pelo ânus. O ser humano habitua-se a tudo. Já estou na Índia há umas semanas, e acho que já não me afecta ver o que vejo, porque já fui engolida numa multidão tão grande de crianças esfarrapadas de ontem hoje e amanhã, que penso que a mente ficou dormente. Mas talvez assim não seja, penso agora, nos meus quarenta, sentada num café, chinelo no pé limpo. Porque quanto penso em Jaipur, só isto me lembra. Dos maravilhosos palácios apenas guardo vaga memória de uma sala encrustada em cristais, e surpreende-me quando vejo as fotografias que tirei, que bonito, devia lá ir, mas lembro-me nitidamente desse mendigo, e aqui estou a vê-lo outra vez, o mendigo que já não lhe basta ser mendigo, mas nem ânus tem.
Como também retenho de Nova Deli a chegada de comboio, vinda de Mumbai. A linha passa rente a um gigantesco bairro da lata e é alvorada. Altura de todos os homens fazerem a sua evacuação matinal nas margens do rio. Estou sentada na carruagem, e à minha frente está a simpática família de classe média e educação elevada com quem confraternizei e que faz um esforço para ignorar o que é impossível não ver, rostos quase vermelhos de vergonha. Eu vou encolhida, a olhar só pelo canto do olho, a querer, na minha tarefa de turista, roubar para o álbum de viajante que nunca hei-de fazer, aquelas dezenas de rabos impávidos, aliviados por e pelo ânus.
Conversa de merda, esta, e tudo porque voltei à Índia quando me ocorreu o dito e a superfície. O primeiro, porque há coisas às quais o ser humano só se adapta quando começa a perder um pouco do ser-se humano. E depois, porque a Índia que eu conheço de chinelo não é a mesma que recebe aquele turista que eu de repente invejo quando ali estou, mergulhada em merda. Aquele que vai de berço em berço, transportado em autocarro, com sapatinho lustroso onde o pó não ousa assentar. Jaipur, que delicadeza de cidade! que tom rosa idílico ao entardecer, quando o céu lhe acompanha o tom e refresca o ar com a doçura de um gin tónico.
Tenho inveja do turista salta-berços, em Jaipur. Da leveza com que vai e vem, no útero de um autocarro onde não entra calor nem poeira, que passa pelo mendigo que caga pela barriga com a velocidade exacta para que a imagem não entre no resguardo daquelas janelas, que, chegado a casa, compõe um álbum com fotografias claras, em nada conspurcadas de dúvidas ou desfocadas de angústias.
Não ficou ali, esse turista e a sua visão de superfície. Saiu dali, como eu, e encontro-o na Índia como em Portugal e em qualquer lado do mundo. Vai de autocarro ambulante na ponta da língua e nele passa em velocidade de cegueira pelos becos e ruas que outros caminham sem irem a lado nenhum, acelera aos gritos pelas vidas que a vida esmaga e só nos palácios cor-de-rosa se debruça à janela. Para ver o pôr-do-sol amansar paredes e luzir cristais. À superfície do que vê e pensa acredita, por vezes de boa-fé, que naquele autocarro, que confortavelmente o leva, pode qualquer um ir. Desde que trabalhe e seja honesto. Numa formidável teimosia de não espreitar caminho e perceber que o combustível que alimenta a viagem, e o seu conforto de rabo sentado, são precisamente esses corpos miseráveis que nunca ali poderão entrar.
@Rita Cruz. 2022