Levo comigo, pelas estreitas ruas da cidade, os meus dezasseis anos e o livro que ainda não li. Na rua para onde me levo, uma língua de gente verte da boca da livraria que é pequena, coisa de paixão e pouco lucro, e não alberga a simultaneidade inédita de tanta gente. Escondo debaixo do braço a lombada virgem e olho em volta, para a gente que é mais do que eu. Na altura, nas idades, nas cabeças, nos livros que trazem nas mãos e que não são só um, mas muitos, folheados, lidos, as capas soltas e não coladas ao resto como a minha, que ainda nada revelou do que lhe foi pedido guardar. Só o meu livro ainda não cheira à pele dos dedos.

Espreito. À minha cidade, encolhida num frio planalto da Serra, onde por estas datas passadas ninguém vem, veio ele. Está sentado ao fundo da modesta sala e as pessoas debruçam-se e dizem coisas importantes e ele responde e todos têm o que perguntar e ele o que responder. Penso então que ele me pode perguntar se gostei do livro e sinto a boca secar porque não sei mentir. E o que faz então aqui, se nunca me leu? Talvez lhe consiga dizer É a escrita, sabe, o amor pela escrita que não conhece dono nem data. Estou aqui em antecipação da minha admiração. Mas sei que não conseguirei, porque sou calada e tímida como a minha cidade de granito, e ainda é cedo para pensar nas razões assim.

A fila desfaz-se à minha frente, e agora sou eu e ele. Entrego-lhe o livro não lido com mãos de intrusa, húmidas de vergonha. A capa range ao abrir, num ruído insuportável que se ri de mim. Ele pergunta-me o nome, escreve-o debaixo do título “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” e depois aperta-me a mão com força e demora, como que eu seja gente e esteja onde devo estar, e ele me agradeça estar ali. Como se o mundo se tenha virado do avesso.

Saio da livraria com a mão dele na minha. O aperto, que não largo então, nem nunca, há-de dizer-me ao longo dos anos que não se trata do livro, mas dos livros; do amor à literatura e da gratidão a quem escreve e a quem lê. Hei-de levar esse aperto pelas ruas da vida, por paisagens que já não serão de granito, e um dia, longe da minha cidade e do meu país, hei-de finalmente lê-lo e deslumbrar-me e perceber que me disse muita coisa, naquele dia tímido, em que as palavras foram apenas as poucas do meu nome.

@Rita Cruz. 2022

Fotografia @Suzy Hazelwood

Texto que tive a imensa honra de ser convidada a fazer, no âmbito da homenagem aos 100 anos de José Saramago, realizada pela Universidade Popular do Porto. O texto, juntamente com o de outros escritores e poetas, esteve patente numa exposição de textos e trabalhos visuais, e ficou incluído na brochura da mesma.

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