Foi aquela tarde, sabes? Aquela tarde fez de mim outra. Demorei tempo a sabê-lo e depois, demorei outro tanto a avaliar o que faria se voltasse atrás. No caminho atrapalhado dos anos, nunca a perdi. Como perdi tantas outras tardes, mesmo as tuas. Não são assim tantas, contas feitas, as que têm lugar perpétuo nas bancadas do ser.
Estávamos na Colômbia. Tinha se ser a Colômbia a rasgar-me. Eu, ali, no meio da selva, com a minha cabeça de adolescente tardia num mundo de adultos precoces, vinda do interior de um país calado e tímido, arrumado na cauda da Europa. Tínhamos as duas saído da aldeia que protegíamos, uma pequena comunidade posta a viver junta na tentativa de sobreviver aos ataques paramilitares, ordenados por um estado terrorista. Tínhamos descido ao rio, a receber mantimentos, a trocar informações, e tínhamos ambas dito que não precisávamos de ser substituídas.
Seria?
Ainda agora não tenho a certeza de se precisava ou não. Mas sei, por certo, que não o queria. E sei, agora, ao olhar para trás, como te disse, que não seria a mesma pessoa se tivesse entrado na lancha e partido em direcção ao pueblo. Não teria essa tarde em mim, e o que teria em vez dela não me levaria a mim. Eu sou aquela que regressou à aldeia pelo caminho suado da selva, fechado de árvores, à beira do afluente pequeno, cada vez mais sedento, sufocado de medo e insónias. Eu não sou a que virou costas e se sentou no banco de madeira da lancha, a que partiu com a proa a rasgar as águas do rio Atrato, a abrir o horizonte, a limpar com respingos a sujidade acumulada daquele cansaço.
Sou a que ficou. A que voltou àquela aldeia fechada, vigiada por todos os lados, asfixiada de intenções. E que a meio do caminho avistou o pequeno barco de madeira, que já não recordo como se chamava, onde só cabiam duas pessoas, e que descia, com dois vultos agachados, tão baixos que parecia o barco deslizar sozinho na moleza da água. Os dois com tanto medo de ruído que nem os remos usavam. O pânico nos olhos.
Sem aquela tarde, teria sido tão mais fácil regressar ao meu país pacato e tímido. O meu país que abraçava um admirável mundo plástico, a quem não interessava saber dos bastidores da peça que aplaudia. Tu também, lembro-me, não querias saber. Kurt Cobain tinha dito adeus, mas ainda cheirava tanto a teen spirit. E eu, num curto intervalo de tempo, ficara desenquadrada, deixava de ser adolescente. As luzes de néon de um capitalismo desenfreado, alienante, já não me cegavam, já não me seduziam. Só via os bastidores. E recusava-me a aplaudir a peça. E só queria falar de coisas que ninguém queria.
Não houvesse aquela tarde e teria sido mais fácil o regresso, não teria ficado tão calada, tão sozinha. Não sei se alguém reparou o quão sozinha estava, porque todos temos um santuário interior que fechamos ao mundo. Vou explicá-lo agora, e talvez me arrependa, porque esse santuário que albergamos está colado às paredes do corpo e não se explica bem fora dele. Vejam se me entendem, contudo. O barco desce, e nele, agarrados à madeira, de costas dobradas, paralelas ao rio, dois homens que conheço bem agacham-se. Quando levantam a cabeça, noto-lhes o pânico. Não são precisas palavras para comunicar o medo, ele vive no rosto, nasceu antes da nossa espécie aprender a falar. Por isso, antes deles articularem em palavras o que faziam ali, antes de olharem à volta e sussurrarem entraram na comunidade, já o meu peito me sufocava.
Diziam eles, no sussurro assustado, que os paramilitares, que circundavam a aldeia há semanas, a enviar missivas e a fazerem-se saber ali, a tinham invadido. Não interessam os pormenores, neste relato, nem esclarecer todos os horrores associados a esta ideia, apenas talvez pequenas visões, porque elas pertencem ao momento e à memória dele: crianças agarradas à minha roupa, agrupadas nas escadas de casa, a ocuparem todos os degraus porque nós, as estrangeiras, poderíamos evitar que as cabeças fossem cortadas; um helicóptero a sobrevoar a aldeia e depois a metralhar a escuridão do campo e a regressar atrás, e a menina com os olhos tão abertos, tão esticados no medo, tão cheios do vazio que afinal é cada momento da vida — estamos, e de repente não estamos, e nada fomos.
Esse confronto. Agarro-o. É esse confronto. Essa evidência da tamanha fragilidade que vivemos a negar. Com a mente enfiada em coisas pequenas, vulgares. Problemas que não são problemas, mas que, no esquecimento do que importa, lhes damos importância que não têm. E de súbito, um toque divino, um sopro de morte. E tudo mingua.
Tudo é tão nada.
Foi essa tarde. Sem ela, não entenderia estas palavras que leio, neste livro que me fascina e arrancou de mim estas memórias: “But when it was all over, and when I was alive… the release of fear gives you a rush, high of just being alive. You’re alive like you’ve never been alive before.”*
Tenho em mim as ferramentas para a entender. Esse momento, que tantas vezes existe na guerra, é uma cicatriz permanente que o corpo carrega. Eu só sei, por causa daquela tarde em que nada aconteceu. Não tenho uma cicatriz, tenho um arranhão. Mas já lá vão vinte anos e não sarou, não sarará nunca. Mas por ser um arranhão, não infectou, não propagou, não criou pus e nunca teve condições para me amputar.
Os paramilitares, afinal, não tinham entrado como eles achavam. Mas eu não sabia, e mandei-os descer o rio, aos dois jovens que eu conhecia tão bem, e que iam agachados naquele barco que não lembro o nome, enquanto nós corríamos de volta à aldeia, com uma coragem irresponsável que ainda hoje me abisma. Tão pequenas, numa selva tão imensa. As nossas pernas corriam, com o corpo à vista das balas, para entrar na aldeia antes que eles cortassem cabeças, antes que queimassem sonhos, antes que vertessem, nos olhos daquela menina que me agarra a memória, o horror e a loucura dos Homens. Quando nos aproximámos, ouvimos gritos, vimos labaredas, descortinámos choros. Lembras-te? Tão bem como eu? Terás tido, talvez, muitos outros momentos destes, por onde a vida te levou. Mas eu só tive este.
Não havia nada, afinal. Imaginava o choro no riso, os gritos na brincadeira, as labaredas não sei onde. Tinha sido tudo um mal-entendido, uma reacção a semanas de susto marinado. Entrei na aldeia e ainda agora recordo o alívio. O tremendo alívio. A alegria de estarem todos vivos. Os líderes da comunidade, que cumprimentei com uma euforia despropositada, ou assim lida até todos saberem do mal-entendido. Todos vivos. E eu mais viva ainda. Tão, tão viva. A saber que existia em mim a coragem de abdicar de mim.
Não entraram nessa tarde, mas entraram depois, passados poucos dias. Era madrugada, ainda. Tinham espingardas e metralhadoras. Tinham armas que o meu vocabulário não conhece. Já não corríamos. Estávamos na aldeia, com os líderes ao lado e a população atrás. Tão, tão casadas de noites sem dormir, a aspirar o fumo das espirais que afastavam os mosquitos e se colava à garganta e embaciava os óculos. Estavam ali, violavam a comunidade, mas ainda assim, só vinham trabalhar o susto. Não lhe davam corpo, apenas contornos mais definidos com que trabalhar os pesadelos. Deixavam a imaginação à solta, aquela com que se ouvem gritos e se vêem labaredas. Sabiam tudo muito bem sabido, e eu estava só a aprender. Perdi a doce ilusão da imortalidade, na vulnerabilidade daqueles dias, na vontade de gritar que entendi naquelas armas caladas. Perdi o aconchego da ignorância.
Durante muito tempo, não achei que tivesse ficado sozinha por causa daquela tarde. Não pegava nela, porque era delicada e temia que se partisse em mim. Só agora, numa extravagância de tempo passado, é que o faço e descubro, com um espanto manso, que foi devido a ela. Ficou na pele, num arranhão que não sara, que ainda arde ao tocar, que ninguém vê e que poucos entendem se o arrisco a mostrar.
Quando larguei a Colômbia, fiquei sozinha com isto tudo. E no regresso, tu tiraste-me a mão. Mas essa tinha sido, afinal, a minha escolha. Aquela tarde, ou tu. E sem eu própria saber, foi o vazio da tua mão que me ergueu. Não consegui nunca que aquele momento de abandono me falasse de outra coisa que não de amor. Mesmo que o mundo inteiro me dissesse o contrário. Eu tinha as minhas razões para ver tudo de pernas para o ar. Não seria contigo, o que sou com aquela tarde. Não existiria em mim este arranhão e este tremendo vazio que me arranca palavras do peito numa dolorosa exigência de preenchimento. E sim, se voltasse atrás, voltaria a deixar a lancha partir sem mim.
*Palavras da fotojornalista Catherine Leroy, retiradas do livro de Elizabeth Becker, You Don’t Belong Here.
@Rita Cruz. 2022