E se, impotente perante a violência, uma menina conseguisse entrar tão dentro da escuridão do corpo até desaparecer nele?

Que saudades, Pedrinho, que saudades desse tempo em que o mundo era um quarto e uma biblioteca.

Excerto

Avanço, com o medo a boiar nos olhos.


Está escuro lá dentro, onde o sol nunca entra e nunca toca as paredes. Hesito, a pedra na mão, o pavor nas pernas. Dou um passo e espreito, a cabeça no escuro, o corpo na luz. E a primeira coisa que leio naquele espaço, quando os olhos ainda só o apalpam, é o cheiro. Cheira àquela noite. O casebre guardou-lhe a memória. Mesmo com a porta aberta, está lá. No ar, nas paredes, na terra do chão. Cheiro a podre, a preces, cheiro a medo transpirado, a morte sussurrada. Está tudo retido ali, como se, mesmo com a porta aberta, o ar não se renovasse.


Depois vejo. Aos poucos. Sem que me consiga mexer para dentro ou para fora daquele espaço. A mesa de madeira partida no chão. A trempe de ferro atirada para a entrada da porta. Ossos. Ossos no chão, quase limpos de carne. Os animais tinham vindo terminar o que o homem não terminara.


O cérebro, descubro ali, é um reservatório de inesgotável crueldade líquida. Podia ter-me lembrado antes. Podia ter sabido antes de ali chegar. Mas agarrou-me a consciência até àquele momento, em que me encharca de lembrança. Como se me castigasse, por apenas eu ter sobrevivido.


Estou agora de joelhos, fora de casa.


Tenho o estômago colado às costas, os pulmões doridos de choro, os olhos tortos, cegos, a arderem de sal. Estou ali há horas, porque o Sol já desceu e o céu escurece. Vai ser noite. O silêncio já não existe à minha volta. A natureza acordou. Limpo a cara e sujo, sem querer, a manga do vestido de seda. Olho para a saia e, porque me ajoelhei-me no chão, vejo que também está suja. Como os meus pés. Como as minhas mãos também já começaram a estar. Os restos manchados de uma ilusão.


Não me resta alternativa outra, que a de entrar naquele casebre. A sobrevivência é feita de horrores. Sobrevivi, quando elas morreram. E viver, percebo, é isto. Não é sedas e veludos. Não posso ficar ali fora à noite e só me resta ficar lá dentro, na noite de susto que ali ficou guardada, à minha espera.


Não entro logo. Espero. Espero que seja noite mais fechada, noite que não tenha luz que me deixe ver. A Lua é uma unha de luz fraca. Antes de entrar, levo a saia ao rosto, enfio nela o nariz, para que não me chegue o cheiro ao estômago ferido. Fecho a porta e a escuridão é total por algum tempo. Depois, há-de deixar de o ser. Há-de encher-se de imagens e eu hei-de ter de fechar os olhos e fugir de todas as sombras. Caminho rente à parede e chego à enxerga. Deito-me. Esmago o nariz no vestido, que ainda tem cheiro a sabão perfumado e me impede de farejar o que ficou nos fios da palha. Aos pés, sinto a manta de burel, mas afasto-a com um pontapé, como se me atacasse.


Quando não se tem para onde ir, volta-se para o único sítio que se conhece. Mesmo que com pedras, com socos e com sustos. Volta-se.


A noite vai escorrendo do cérebro, mesmo com os olhos fechados e as narinas tapadas, e começo a tremer do frio que ela derrama. Tenho onze anos e nunca estive sozinha ali. Havia sempre a avó e a Florzinha, ambas agora pontes para uma memória de horrores que me leva até ele. O demónio. Tremo e murmuro preces porque não sei onde ele está, mas ele sabe onde eu estou. Murmuro preces para que ele não venha. Digo que não há comida nem água, como se as minhas palavras lhe pudessem tocar os ouvidos, na forma de um pensar solto arrastado na brisa. E falo cada vez mais alto, para que o ar não ouça a conversa que vai dentro de mim, a voz vinda da minha mente que diz Mas tu estás aqui. Não há água, nem há comida, mas tu estás aqui. E os meus lábios continuam a repetir o que não há, enquanto a minha mente insiste no que há. Não há nada aqui, nem comida nem água, nem comida nem água, não há nada aqui, nem comida nem água, nem comida nem água, não há nada aqui…Mas tu estás aqui.

E e ele sabe…

E é então que acontece.

A fugir do pensamento, meto-me dentro de mim e mergulho tão fundo, que encontro um abrigo dentro do corpo. Um sítio escondido, resguardado dentro das entranhas, onde cabe o corpo inteiro. Como uma cova ou uma gruta nas vísceras de uma floresta. Dentro dele, nada se sente. Como que as sensações sejam tempestade e no refúgio não entrem gotas e os trovões percam força. O refúgio é seco, acolchoado. Sento-me nele, apaziguada. Os sobressaltos, o que se recorda, o que se esquece, o que se teme, o que se deseja, são paisagens que se observam. Tudo se passa lá fora, não aqui dentro. O meu corpo já não sente frio, a minha pele já não tem medo, os meus olhos descansam, os meus lábios calam. Deslumbro. Não sei onde estou, mas posso ficar aqui até morrer.

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